Há mais de 500 anos o Tratado de Tordesilhas criou um meridiano sobre o oceano Atlântico, que repartiu o mundo a Ocidente para Espanha e a Oriente para Portugal. Os dois primeiros impérios globais asseguravam assim zonas de influência, de modo a evitar conflitos que os distraíssem das suas missões centrais: alargar territórios, onde já estavam implantados, de modo a maximizar o esforço da expansão.
Portugal sedimentava assim a projeção do seu poder geoestratégico em África e na Ásia, consolidando as posições conquistadas nas costas africanas, na India, Malaca, China e, mais tarde, Japão, garantindo as preciosas rotas para as especiarias que o transformaram então no mais rico reino na Terra, tendo o maior expoente o Rei D. Manuel I, e a Espanha acabava de chegar ao Novo Mundo da América, conquistando paulatinamente territórios como o México, as Caraíbas, a Colômbia e o Peru, que ofereciam riquezas sem fim, especialmente ouro e prata, propiciando à dinastia dos Áustrias recursos inesgotáveis para consolidarem um poder sem paralelo, particularmente quando, após o desastre de Álcacer-Quibir, e com morte do jovem rei português D. Sebastião e o extermínio de grande parte da velha nobreza lusa na campanha fatal do Norte de África, a coroa portuguesa se viu forçada a se juntar à espanhola, uma vez que o legítimo sucessor ao trono de Lisboa era Filipe II, enquanto mais próximo parente do malogrado monarca português.
O Tratado de Tordesilhas terminou aí, na junção das coroas e um só império, “onde o sol nunca se punha”, que durou 60 anos e que só se voltou a cindir com a revolta portuguesa e a ascensão ao trono do Duque de Bragança, D. João IV, cuja dinastia durou até à implantação da República em 1910. Com a restauração da independência, Portugal recuperou uma boa parte do seu império ultramarino, aproveitando o facto de a dinastia dos Áustrias estar em declínio, a Espanha na bancarrota, procurando desesperadamente segurar revoltas na Catalunha e nos Países Baixos, e voltou a ganhar a soberania do Brasil, das possessões na costa ocidental e oriental de África, como a Guiné, Angola e Moçambique, partes da India, como Goa, Damão ou Diu, Macau, e algumas ilhas na Indonésia, como Timor. Neste caos, os despojos do império foram disputados pelos ingleses e holandeses, ficando os primeiros com algumas possessões portuguesas a título de dote de casamento, como Bombaim e Tânger, indispensáveis para D. João IV garantir a velha aliança militar com os britânicos, casando a sua filha, Catarina de Bragança, com Carlos II de Inglaterra.
Embora Portugal e Espanha tenham mantido vastos impérios durante séculos depois disso, com territórios espalhados por vários continentes, nada mais foi igual à glória vivida, primeiro por Portugal nos séculos XV e XVI, e depois por Espanha, nos séculos XVI e XVII. A decadência foi contínua, sobretudo pelo engrandecimento de outras potencias coloniais, como o Reino Unido, a França, a Holanda ou a Alemanha, mais mercantilistas e mais implacáveis no seu domínio, aprofundando um afastamento entre Portugal e Espanha, que sendo vizinhos na Península, se tornaram cada vez mais estranhos e distantes, praticamente até à adesão de ambos os países à União Europeia, momento de viragem nas relações diplomáticas e económicas, que não cessam de crescer, sendo hoje a Espanha o primeiro parceiro comercial de Portugal e exportando a Espanha para Portugal, apesar da sua pequena dimensão física, mais do que para toda a América Latina.
Esta desconfiança histórica entre os dois países ibéricos vem sendo progressivamente anulada: Portugal já não vê Espanha como a sua principal ameaça geoestratégica, que, afinal, lhe deu uma identidade una para se defender contra um inimigo permanente e muito superior em grandeza, sendo mesmo a causa para se tornar uma potência atlântica, uma vez que o caminho para o continente europeu lhe estava barrado, e a Espanha começou a olhar para Portugal com uma curiosidade e respeito que séculos de despeito e indiferença o tornaram quase invisível para a maioria dos seus cidadãos, apreciando agora o facto de um pequeno país poder ter tanta projeção diplomática, uma unidade de Estado invejável e uma qualidade de vida, assente na discrição e na humildade, por vezes excessiva, que o torna hoje como o “best well kept secret of Europe”.
Passado é passado, o presente é desafiador e o futuro pode encerrar grandes vantagens se os países ibéricos souberem coordenar os seus esforços e fizerem da cooperação uma vantagem sinérgica, oferecendo ao mundo, que fala espanhol e português, uma narrativa diversa daquela que os anglo-saxónicos realizaram, anulando todas as conquistas históricas dos demais, construindo uma matriz que, possivelmente, no futuro, se achará ameaçada, pois a diversidade e a abertura ao mundo, mais integradora nas posturas ibéricas, poderá ser bem mais atrativa, sobretudo num planeta em que o epicentro das decisões políticas, económicas e civilizacionais, estão em rápida transferência do Ocidente para Oriente.
Aliás, é precisamente no jogo geopolítico hodierno, em que a Europa e os Estados Unidos, recuperando a velha aliança do passado recente, reforçando a NATO, politica e militarmente, e estabelecendo um tratado de livre comércio, capaz de se contrapor à China, como o maior espaço de liberdade, democracia e de produção de riqueza e consumo, pode conferir aos países da Península Ibérica um papel acrescido, valorizando o seu “soft power” e influência diplomática, fazendo deles pontes para unir o que ainda está disperso, mas que, integrado, pode representar um poder incomensurável.
Como atrás foi dito, nem sempre as relações entre Portugal e Espanha foram amistosas e alinhadas estrategicamente, mas o Norte de Portugal e a Galiza primaram sempre pelo entendimento, já que têm a mesma raiz étnica, linguística e cultural, sendo naturais extensões uma da outra, constituindo o melhor exemplo de uma Euroregião, o Noroeste Peninsular, que devidamente desenvolvida e aproveitada em todo o seu potencial, constitui um exemplo e modelo para o resto de Espanha e Portugal, assim como para a Europa em geral.
Nos últimos 40 anos muito foi feito e no bom sentido, mas, quer os portugueses do Norte quer os galegos, sabem que muito potencial existe ainda para ser desenvolvido, aproveitando sinergias e complementaridades, fortalecendo-se mutuamente, para, desta forma, serem igualmente mais fortes juntos dos poderes centrais, em Lisboa e Madrid, que nem sempre as valorizam como merecem.
A Associação Red Mundo Atlantico surge, assim, na esteira deste desígnio superior, de usar a cooperação não pelo simples exercício de colaborar, mas para atingir objetivos claros e definidos, que permitam que a Euroregião possa ser mais consolidada para que a Península Ibérica seja mais relevante na Europa, e desta forma a Europa possa aproveitar o legado histórico mais rico que Portugal e Espanha deixaram no mundo, as muitas centenas de milhões de pessoas que falam as línguas ibéricas, que se distinguem na diversidade cultural, que oferecem capacidades únicas por explorar e que são fundamentais para dar ao mundo um contraponto à ascensão asiática, preservando os valores da liberdade, do pluralismo e da heterogeneidade, que são património do humanismo que, as voltas da História, nem sempre evidentes, deixaram como legado rico e único à Humanidade a que pertencemos: o iberismo humanista.
Paulo Vaz
Vice-Presidente Red Mundo Atlantico